quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Takuan Soho segundo Heugen Herrigel em "Zen e a arte do tiro com arco"

"Entre os mestres da espada dá-se como provado, com base em esperiências instrutivas, realizadas consigo próprios e com os seus alunos: que o principiante, por muito forte e combativo que seja, por mais corajoso e valente que seja em casa , se vê, com o começo das aulas, privado da anterior autoconfiança e despreocupação. Ele aprende agora todas as possibilidades técnicas de arriscar a vida, num combate com espada, e embora esteja, muito em breve em condições de levar ao extremo a sua atenção, de observar de forma penetrante o adversário, aparar os golpes segundo as regras da arte e atacar com eficácia, ainda estará pior do que antes, quando ainda golpeava ao acaso, meio a sério, meio a brincar, conforme o momento e o entusiasmo da luta. Por esta altura ele tem de reconhecer que cada vez que defrontar um adversário mais forte, ágil e preparado estará em inferioridade, exposto aos seus golpes certeiros. Não vê outro caminho, que não seja o treino incansável e tão pouco o seu mestre, de momento, aconselha outra coisa. Assim o discípulo investe todos os seus esforços para superar os outros, e até a si próprio. Adquire uma técnica impressionante que lhe devolve alguma da autoconfiança perdida e sente-se cada vez mais perto do objectivo ambicionado. O mestre encara isso noutros termos - e com razão, assegura-nos Takuan, pois toda a capacidade técnica do aprendiz leva apenas a que o "o seu coração não seja levado pela espada". As primeiras lições não podem, portanto, ser dadas de outra forma, uma vez que são feitas à medida do principiante. Contuto não o conduzem à meta, como bem sabe o mestre. O aprendiz apesar de toda a dedicação e talento inato, não se torna inevitavelmente num mestre. Como é possivel que ele, depois de aprender a não se deixar levar pela excitação do combate, mantendo o sangue-frio, ele, que sabe dosear cautelosamente a força física e se sente preparado para um comabte de longa duração, não encontra já facilmente adversários à altura, como é possivel, ainda assim, que ele confrontado com uma situação extrema, falhe e se veja paralisado? Segundo Takuan, isso explica-se porque o aluno não consegue deixar de observar com apreensão o adversário, e aforma como este maneja a espada; porque raciocina sobre a forma mais eficar de o atacar, aguardando o momento em que ele se expõe. Resumindo, explica-se porque o aprendiz recorre a toda a sua arte e ciência. Enquanto o fizer, deita a perder toda a "presença de coração", diz Takuan: dá sempre tarde de mais o golpe decisivo, e não consegue por isso que a espada dependa do uso consciente da técnica, da experiencia de combate de da táctica, mais vai inibir a livre mobilidade no "agir do coração". Como se poderá corrigir isto? Como é que a capacidade técnica se torna espiritual e como pode a mestria magistral da espada libertar-se do domínio tirano da técnica? A resposta é: unicamente se o discípulo se libertar da intenção e do Eu. Ele deve ser levado a libertar-se, não só do adversário, mas também de si mesmo. Tem de percorrer o estádio em que se encotra, deve chegar e deixá-lo definitivamente para trás de si, correndo o risco de fracassar completamente. E isso não parecerá tão contraditório, como quando é exigido no tiro com arco acertar no alvo sem ter feito pontaria, e perder de vista o alvo, e a intenção de acertar? Entretanto é preciso lembrar que a mestria da espada, cuja essência Takuan descreve, foi provada de mil maneiras, justamente em combate, não o caminho em si, mas o acesso a esse caminho que conduz ao objectivo ultimo, tendo em conta as características de cada um. Em primeiro lugar, ensiná-lo a esquivar-se dos golpes instintivamente, mesmo quando são inesperados. D. T. Suzuki retratou num incidente delicioso o método perfeitamente original utilizado por um mestre para cumprir essa tarefa, que não é nada fácil. É como se o discípulo devesse atingir um novo sentido, ou melhor, uma nova atenção de todos os seus sentidos, que o torna capaz de se esquivar aos golpes ameaçadores, como se os tivesse pressentido. Uma vez que domine esta arte de esquivar-se, ele já não terá necessidade de observar com toda a atenção os movimentos de um, ou mesmo mais adversários ao mesmo temo. No momento em que vê e pressente o que está para acontece, já terá anulado instintivamente os seus efeitos, sem que, entre a percepção e o acto de esquivar-se, haja lugar para a "espessura de um cabelo". O que importa é chegarmos ao ponto em que esta reacção imediata, rápida como um raio, já não precisa da obsevação consciente. E assim o discipulo ter-se-á libertado, ao menos neste sentido, de toda a previsão consciente. E já terá ganho muito com isso.
O discípulo entende essas instruções - como não poderia deixar de ser - como se bastasse renunciar à observação, reflexão e a tudo o que se relaciona com o comportamento do adversário. Ele leva muito a sério esta abstenção e controla-se a cada passo, mas ao proceder assim espaca-lhe o facto de, ao concentrar-se em si mesmo, não poder ver-se senão como o lutador que deve abster-se de observar o adversário. Por conseguinte, por boas intenções que tenha, continua a tê-lo secretamente debaixo de olho. Só aparentemente se libertou dele, pois na relaidade ficou ainda mais ligado. Convencer o aluno de que não ganhou nada com esta transferência da atenção exige muito da arte subtil de orientar almas. Tem de aprender que é tão decisivo desprender-se do adversário, como desprender-se de si mesmo, e com isso chegar, num sentido radical, à não intenção. Para isso é necessário muito treino paciente e resignado, tal com no tiro com arco. Mas se estes treinos conduzirem ao objectivo o último resquicio de intenção - o empenho do "eu" - desaparecerá com a não-intenção atingida.
Neste estado de desprendimento a ausência de intenção surge uma atitude que tem semelhanças supreendentes com a capacidade instintiva de se esquivar. Do mesmo modo que não havia uma espessura de um cabelo entre o vislumbrar o golpe e esquivar-se, também entre esquivar-se e atacar sucederá, daqui em diante, o mesmo. No momento em que evita o golpe, o combatente levanta já o braço para atacar, e antes que disso se aperceba, já o golpe mortal e certeiro foi desferido. É como se a espada de manejasse a si própria, e da mesma maneira que para o tiro com arco se diz que algo aponta e algo acerta, também aqui esse algo ocupou o lugar do Eu, servindo capacidades e realizações de que o Eu se apropriou num esforço consciente. E também aqui esse algo é apenas um nome para qualquer coisa que não se pode compreender nem alcançar, e que só se revela a quem o experimentou.
Segundo Takuan, a perfeição da arte da espada consiste em que nenhum pensamento afecte o coração, quer seja acerca do "eu", do "tu", acerca do adversário e da sua espada, da espada própria e do modo de a manejar, ou mesmo acerca da vida e da morte. "Assim, tudo é vazio: tu, a espada desembainhada e os braços que a manejam. A própria ideia do vazio não está lá. Desse vazio absoluto nasce o desdobramento extraordinário de o fazer."
O que é válido para o tiro com arco e para a arte da espada aplica-se, neste ponto, a todas as outras artes. A mestria em pintura a tinta-da-china(para dar outro exemplo) manifesta-se precisamente nisso, que a mão que domina incondicionalmente a técnica execute e revele o pressentido, no exacto momento em que este toma forma no espírito, sem que haja, entre uma coisa e outra, a espessura de um cabelo. A pintura torna-se uma escrita automática. Também neste caso as indicações dadas aos pintores poderiam ser simplesmente observa bambus durante dez anos, converte-te tu próprio num bambu, a seguir esquece tudo e - pinta.
O mestre da espada volta a ser natural como o principiante. Por fim reconquista a despreocupação que tinha perdido no início do aprendizado, agora sob a forma de traço impertubável de carácter. No entanto, ao contrário do principiante, o mestre é reservado, sereno e modesto, sem qualquer vontade de se gabar. Entre os dois estádios, da iniciação e da mestria estendem-se anos longos e férteis de treino incansável. A capacidade técnica tornou-se espiritual através da influencia do Zen e o praticante transformou-se, vencendo-se interiormente e ficando cada vez mais livre de etapa para etapa. Já não lança mão da espada tão facilmente, só a desembainha quando é inevitável, pois a espada transformou-se na sua alma. Por isso pode acontecer que ele evite o combate com um adversário indigno e grosseiro, que se vangloria do seu feixe de músculos, aceitando dele um sorriso que o acusa de cobardia. Por outro lado, movido por um grande respeito pelo adversário, pode entrar num combate que só poderá levar este último a uma morte honrada. Vislumbramos aqui os sentimentos que estã na base da ética do Samurai, o incomparável "caminho do cavaleiro" também chamado de Bushido. Assim, para o mestre, a "espada da verdade", que ele conhece e que o orienta, está acima de tudo o resto: acima da fama, da vitória e mesmo da vida.
O mestre, tal como o principiante, não conhece o medo, mas ao contrário deste torna-se de dia para dia mais imune ao temor. Ao longo de anos de constante meditação ele descobriu que, no fundo, vida e morte são uma e a mesma coisa, e pertencem ao mesmo plano de destino. Por isso já não distingue a angústia da vida e o medo da morte. Ele tem prazer em viver neste mundo - o que é muito característico do espírito Zen - mas em qualquer altura está preparado para separar-se dele, sem se deixar perturbar pela ideia da morte. Não é por acaso que o símbolo mais puro do espírito do Samurai é a frágil flor de cerejeira. Tal como a pétala tocada pelo raio de sol matinal se desprende e desliza para a terra, cintilando graciosamente, também aquele que não sente medo deve conseguir desprender-se da existência, silencioso e interiormente impassível.
Viver sem medo da morte não significa crer que não se irá tremer diante dela, nas horas felizes, nem significa que se irá vencer a prova. Quem domina a vida e a morte, está mais livre do medo, em todas as suas formas, na medida em que já não é capaz de reviver essa sensação. Quem não conhece por experiência própria o poder da meditação séria e continuada, não pode avaliar as vitórias que ela torna possíveis. Seja como for, o mestre perfeito revela a cada passo a ausência de medo, não através de palavras, mas da sua conduta: olha-se para ele e fica-se profundamente tocado por isso. A inabalável ausência de medo é já para si a mestria, que apenas alguns, como não poderia deixar de ser, atingem verdadeiramente. E para ilustrar o que acabo de dizer transcreverei na íntegra uma passagem do Hagakura, que remonta aos meados do século XVII: "Yagyu Tajima-no-kami era um mestre da espada e instruía nesta arte o Shogun Yokugawa Jyemitsu. Certo dia, um dos guardas do Shogun foi ter com Tajima-no-kami e pediu-lhe para frequentar as aulas de combate com espada. O mestre disse: "Tanto quanto vejo, o senhor parece já ser um mestre da espada. Diga-me, por favor, a que escola pertence, antes de entrarmos na relação professor/aluno."
O Guarda disse: "Para minha vergonha devo confessar que nunca aprendi esta arte."
"Está a fazer pouco de mim? Sou o Professor do venerável Shogun e sei que os meus olhos não enganam."
"Lamento ofendê-lo na sua honra, mas na verdade não tenho quaisquer conhecimentos." Esta resposta tão segura deixou o mestre pensativo, que por fim disse: "Se o senhor o afirma, assim deve ser. Mas será com certeza mestre noutra arte, embora eu não esteja a ver qual."
"Bom, uma vez que insiste, digo-lhe que há uma coisa, na qual me posso considerar mestre. Quando era ainda um rapazinho, ocorreu-me a ideia que um Samurai não deve de forma alguma temer a morte, e desde essa altura - já lá vão alguns anos - passei a ocupar-me com a questão da morte, até que por fim ela deixou de me incomodar. Era talvez a isto que queria chegar?"
"Precisamente - exclamou Tajima-no-kami - era a isso que me referia! Alegra-me verificar que não me enganei. O último segredo da arte da espada consiste em libertar-se da idea de morte. Instruí muitas centenas de discípulos, tendo em vista esse objectivo, mas até agora nenhum deles atingiu o grau máximo da arte da espada. O senhor não precisa de mais treino técnico, pois já é mestre."
O pavilhão de treino, onde se aprende a arte da espada, chama-se, desde os tempos mais remotos: Lugar da Iluminação"

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